Texto copiado do Oly's Blog , um dos melhores pilotos, ou quem sabe, o melhor piloto de XC do Brasil. Alem de voar muito ele ainda faz grandes relatos dos seus voos.
(Texto escrito para a revista espanhola "Parapente".)
Este foi meu sétimo ano em Quixadá. Da primeira vez em que estive lá em
2002 até hoje, houve algumas mudanças importantes, em particular a
antecipação do horário de decolagem de cerca de 09h30 para as 6h30 (o
que aumentou a janela de voo para onze horas) e o desenvolvimento de
parapentes de duas linhas, com ganhos brutais em desempenho. O recorde
local, que então era de 330 km, passou para 463 km e só não superou os
500 km porque o começo e o fim desta temporada foram antecipados sem que
o tenhamos previsto corretamente.
Quixadá é, por uma ampla margem, o local no mundo que abriga a maior
quantidade de voos de mais de 300 km. Há locais que permitem uma janela
maior de voo e ventos ainda mais extremos e alinhados, mas em termos de
consistência nenhum deles chega perto do Nordeste brasileiro. Há outra
vantagem importante: apesar do resgate difícil e do terreno inclemente, a
região é relativamente bem povoada e em boa parte das rotas voadas há
povoados com gente extremamente solícita e amável, que se desdobra para
ajudar os pilotos.
O fato de a janela de voo ter sido estendida para 11 horas supõe alguns
desafios. O esforço mental para estar tanto tempo no ar lidando com
situações difíceis e procurando não cometer erros é enorme. Há outro
aspecto psicológico importante no voo em Quixadá: os dias não voados ou
em que se pousa cedo tendem a gerar ansiedade nos pilotos. Quando não se
passam muitas horas voando, são muitas as horas de "espera" por assim
dizer. O outro desafio é físico. É preciso beber, comer e urinar em voo.
Se o piloto não está em plena forma, a chance de sofrer uma
desidratação ou um esgotamento é grande. Daí a necessidade de ter dias
de descanso após voos longos.
O vento na decolagem é forte na maioria dos dias e em alguns dias além
do razoável para decolar com segurança. Nem sempre esse vento se mantém
na rota de voo. É comum experimentar vento fraco entre meio-dia e duas
da tarde. Um grande patrimônio local de Quixadá é o coordenador de
decolagens Paulo "Casca", que desenvolveu uma habilidade impressionante
de observação dos ciclos do vento. É sob as ordens dele que os pilotos,
dos menos aos mais experientes, puxam seus tirantes para decolar. Os
meninos locais de Juatama, a localidade mais próxima à rampa do "Morro
do Urucum", como é chamada, ajudam os pilotos a abrirem as velas e a
mantê-las no chão durante as rajadas mais violentas.
Até este ano, historicamente, os melhores voos em Quixadá haviam sido
realizados em novembro. Este ano acabei indo mais cedo, em 12 de
outubro, porque não pude tirar férias em novembro. Foi uma feliz
coincidência, já que aparentemente (escrevo este texto em 16/11, e tudo é
possível em Quixadá...) o mês de outubro foi muito melhor, com nada
menos que 12 voos acima de 400 km. Sem uma boa estação meteorológica em
Quixadá e outra por volta do km 300, seguiremos num "jogo de adivinhar",
já que as previsões dos vários sites disponíveis nem sempre são
precisas para a região. Aliás, essa é outra característica de Quixadá:
independentemente da previsão, as tentativas de recorde são feitas todos
os dias, exceto nos de descanso, em que não há alternativa.
O resgate envolve rodar muitos quilômetros, inclusive em estradas de
terra. Para se ter uma ideia da sua dimensão, os voos de mais de 400 km
que fizemos este ano envolveram resgates de cerca de 1500 km. Em duas
semanas, o carro que aluguei rodou 6000 km. No primeiro voo de 430 km,
cheguei ao hotel às 5h30 da manhã (quase 24 horas após ter saído para
voar) e logo me dei conta de que nos próximos voos longos teríamos que
dormir em algum local no caminho e usar o dia seguinte para o regresso.
Cheguei a Quixadá alguns dias antes da equipe SOL. A viagem começou com
um susto. Minhas linhas já tinham mais de cem horas e as do tirante B
estavam encolhidas cerca de 6 cm, fato que só fui descobrir
posteriormente quando troquei o set de linhas. Tive dois eventos de
cascata nos primeiros 30 km de voo e pousei com as pernas tremendo e as
mãos suadas. O voo seguinte (13/10) foi minha primeira oportunidade para
chegar aos 400 km, mas pousei às 14h27 com 260 km voados. Embora fosse
um dia de pouco vento, as mais de três horas desperdiçadas teriam sido
suficientes para voar 140 km adicionais, já que o fim da tarde é o
período do dia que costuma render a melhor média. Os próximos dias foram
usados para descanso. Num deles estava sem resgate e nos outros a
condição não era ideal para voos longos.
Uma nova tentativa solitária de voar 400 km (18/10) seria corretamente
abortada no km 170 num dia em que o céu azulou. O dia 19/10 foi o
primeiro em que coincidi com a equipe SOL no ar. Já havia voado com
Marcelo Prieto (Cecéu) e Rafael Saladini em 2007. A maneira como
cooperavam em voo, se alternando na tomada de riscos e em comunicação
permanente, me impressionou muito. Naquele ano eu voava de DHV 2/3, e
nossa parceria só durava as primeiras horas do voo. Este ano havia um
total de seis pilotos de elite (Frank Brown, Marcelo Prieto, Donizete
Lemos, Samuel Nascimento, André Fleury e Hernan Pitocco) na equipe
voando juntos parapentes de 2 linhas, se comunicando e se auxiliando de
forma permanente, debatendo as alternativas em voo, literalmente
varrendo o sertão da maneira mais eficiente possível. O sistema que já
era eficiente em 2007 passou a ser praticamente infalível e somente
deixou de bater o recorde mundial de distância livre porque o final da
temporada foi precoce.
Voar com a equipe SOL foi uma revitalização para mim. Durante o ano,
praticamente só faço voos sem companhia em Brasília. Voei sozinho no
sertão em 2010 e 2011, dois anos ruins em que a equipe optou por não
tentar o recorde. É um exercício por vezes maçante, e o nível de
estresse é muito mais alto quando se voa sem parceria por tantas horas.
Foi um privilégio ver o sistema SOL em marcha. Exceto nos momentos mais
difíceis, é impressionante a descontração dos pilotos. Ouvem-se piadas
no rádio, as alternativas são debatidas, as lideranças alternadas. Sem
falar no coordenador de resgate, Dioclécio Rosendo, exímio navegador e
motorista, que conhece a região como ninguém.
Meu primeiro voo de mais de 400 km foi justamente nesse dia (19/10). A
equipe voou até Pedro II (288 km) passando por três pontos pré-definidos
e estabelecendo o primeiro recorde mundial da Expedição SOL/Amarok no
que terá sido um "exercício de aquecimento". Como ainda havia três horas
de voo e aquela era a melhor chance que havia tido até então de romper a
barreira dos 400 km, segui o voo sozinho e pousei às 17h30 em União
(432 km), às margens do belo rio Paranaíba, a fronteira natural entre os
Estados do Piauí e Maranhão.
Meu resgate nessa viagem foi um amigo de longa data de Brasília, que
apelidei de "Índio Velho". Chegou rapidamente, e pegamos mais de dez
horas de estrada para regressar a Quixadá. Após um voo e um resgate como
esse, o corpo fica mole e um dia de descanso é insuficiente para
recuperar as energias. Como o relógio biológico já está programado para
acordar muito cedo, mesmo estando exausto é difícil dormir até tarde na
tentativa de repor o sono.
Em 21/10, novamente decolamos cedo e enquanto esperávamos o momento
certo de fazer a primeira tirada, a velocidade do vento aumentou muito.
Num momento de falta de atenção, em que programava meu GPS, voei de ré
sem perceber e quando me dei conta já não tinha como voltar para a
decolagem. Joguei no caudal baixo e pousei com poucos quilômetros. O
vento forte também atrapalhou a saída da equipe. Pitocco e Cecéu foram
obrigados a jogar no "venturi" à esquerda da rampa, e a equipe só
conseguiu se juntar novamente no km 20.
Achei que tinha perdido o grande dia porque escutava os comentários no
rádio sobre velocidades de solo superiores a 100 km/h. Mas quando o
vento é muito forte, as térmicas ficam mais quebradas, e é difícil se
recuperar após ficar baixo. Foi o que aconteceu com a equipe pouco antes
do km 100. Mais tarde, o céu acabou azulando.
22/10 seria o dia em que voaríamos todos cerca de 462 km. A equipe SOL
fixou um ponto no km 423 como gol declarado, sobre o qual passariam
altos pouco antes das 17h00. Nesse dia, voei com a equipe até mais ou
menos o km 320, quando cheguei mais baixo a uma térmica turbulenta e
acabei perdendo o grupo. A partir daí fiquei para trás umas duas
térmicas, o que em Quixadá equivale a chegar próximo ao chão, quando o
pelotão dianteiro já está fazendo base a 3000m sobre sua cabeça, com um
vento caudal de 30km/h, na melhor hora do dia.
Pitocco também se atrasou e seguimos o voo juntos. Houve um momento em
que eu tinha a certeza de que o grupo da frente faria 500 km, mas já era
tarde e um piloto da equipe ficou mais baixo nos momentos finais do
voo. Os demais decidiram, como haviam combinado, fazer o planeio final e
pousar juntos.
Nesse momento, Pitocco e eu nos encontrávamos mais ao sul da rota que
passava pela baliza do recorde mundial declarado, e eu não tinha contato
visual com o primeiro pelotão, sobretudo porque havia muitas queimadas e
a visibilidade era ruim. Como não tinha a intenção de bater qualquer
recorde (aliás, não tenho licença FAI válida há três anos), segui pela
rota ao sul da baliza, certo de que o pelotão dianteiro pelo menos
encostaria nos 500. Pitocco fez a baliza e voltou para nossa linha, que
rendia bem e ainda proporcionou uma última térmica. Pousaríamos no mesmo
local, em Redenção, no Estado do Maranhão (462,4 km).
Não estava claro então que faríamos uma distância pouco maior do que o
resto do grupo (sequer chegou a dois quilômetros a diferença). Embora eu
estivesse em comunicação permanente com o Samuel, em que transmitíamos
nossas respectivas distâncias da rampa um ao outro, elas eram muito
semelhantes e tudo indicava que pousaríamos todos no asfalto que liga
Caxias a Coelho Neto.
Quando cheguei ao asfalto havia uma estrada de terra imediatamente na
minha proa que levava a um pequeno povoado. Essa era a única via para
esticar o planeio final, pois ao redor da estrada só havia mata. A
alternativa teria sido fazer uma espiral e pousar no asfalto. Decidi
pousar no povoado, e o Pitocco tomou a mesma decisão.
"Índio Velho" foi novamente impecável no resgate e logo nos juntamos ao
grupo. Dormimos em Teresina, no Piauí, para seguir viagem no dia
seguinte. A volta foi tão longa que precisamos de um dia adicional para
descansar. Só voltaríamos à rampa em 25/10, dia em que todos os pilotos
pousaram cedo, com cerca de 30 km voados.
A essa altura, já estava cansado. A experiência de voar no sertão é
incrível, mas também envolve ansiedade e tensão. Acordar muito cedo,
tomar café da manhã às pressas, ir para a rampa e se equipar rapidamente
para decolar antes de entrar vento forte, esperar sobre a rampa o
melhor momento para sair, voar por 11 horas, regressar de carro por mais
de 700 km, descansar, esperar... É uma rotina que consome o piloto, e,
pelo menos para mim, duas semanas em Quixadá são o limite.
Haveria, entretanto, um último voo em 26/10. A equipe SOL voltou a fixar
um ponto para o recorde mundial de distância declarada. Esse dia não
foi o melhor, mas o mais emocionante. Ficamos mais de uma hora sobre a
rampa. Estava muito nublado, e tudo indicava que seria um dia para
treino e imagens. Mas as condições de voo melhoraram rapidamente, e o
time resolveu tentar o recorde. Foi um dia turbulento, com pelo menos
dois incidentes: uma cascata do Cecéu, logo cedo, em que esteve a ponto
de usar o reserva, e uma fechada que sofri, cuja reabertura foi tão
violenta que estourou a fita interna que tensiona o bordo de ataque. No
final da tarde, já sem perspectivas de chegar ao gol declarado,
encontramos uma térmica sobre uma queimada cujo pico atingiu 12,7 m/s.
Foi possivelmente uma das térmicas mais turbulentas que peguei em toda
minha vida. Todos nos concentrávamos para não cairmos em cascata um
sobre o outro. Mas foi também a térmica que permitiu ao grupo chegar ao
seu gol declarado (420 km) e assegurar a homologação do recorde. O pouso
havia sido escolhido no Google Earth e quando o sobrevoamos nos demos
conta de que havia muitos coqueiros altos. Minha aproximação para pouso
foi um exercício de "slalom" interrompido por dois coqueiros que se
chocaram, um de cada lado, com meu parapente e me fizeram despencar
cerca de três metros, por sorte sem consequências graves.
Terminou assim minha aventura no sertão, com três voos de mais de 400
km, um pouso esdrúxulo e uma bela cervejada com a equipe SOL/Amarok.
Costumo dizer que esses voos de mais de 10 horas que fazemos em Quixadá
são uma metáfora de nossas próprias vidas. Nas horas em que permanecemos
no ar, experimentamos todo tipo de sentimentos, bons e ruins. Prazer,
angústia, deleite, ansiedade, alívio, medo, obstinação, esgotamento e
tantos mais. Ao voltar à terra após um dia inteiro no ar, a sensação que
se tem é de dever cumprido, o corpo fica mole e o cérebro recebe uma
injeção maciça de endorfina, o hormônio do prazer.
Não sei se seguirei tendo a energia que se requer para voar no
semi-árido brasileiro. Sempre falo isto e acabo voltando atrás no ano
seguinte. Seja como for, as recordações desses sete anos no sertão
permanecerão para sempre na minha memória. Às vezes deixamos de fazer as
coisas que amamos pelos riscos que envolvem, motivados por nosso
instinto de sobrevivência. Mas quando deixamos de fazê-las, também
abrimos mão de viver. É um dilema, uma linha tênue, e a decisão é sempre
muito difícil. Os sustos que tomei no primeiro voo em Quixadá este ano e
em 2011, quando lancei dois reservas próximo a Monsenhor Tabosa, no que
foi uma verdadeira luta pela minha vida, quase fizeram com que me
afastasse do sertão. É justamente a superação envolvida em voar no
semi-árido do Brasil que talvez tenha representado a experiência mais
gratificante de todos esses anos.